24/10/2019 - ‘Queremos estar no meio de qualquer movimentação de valores no mundo’
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Por: Flávia Furlan
Não são os novos competidores e tecnologias que preocupam a Visa, companhia americana de pagamentos com mais de 60 anos e presença em cerca de 200 países e territórios. Pelo contrário. Nos últimos anos, a bandeira de cartões mudou seus processos internos para tornar mais ágil e menos burocrática a conexão de fintechs ao seu sistema, a fim de torná-las aliadas no processo de transformação por que passa o setor de pagamentos.
A Visa tem, inclusive, fechado parcerias comerciais com essas empresas de tecnologia financeira, fazendo investimentos quando considera pertinente. “Estamos fazendo tudo que podemos para ter certeza de que estaremos no meio de qualquer movimentação de valores no mundo”, disse Alfred F. Kelly, CEO global da Visa desde dezembro de 2016, em entrevista ao Valor durante passagem recente por São Paulo.
Kelly diz que ainda hoje seu maior concorrente é o dinheiro. E é isso que faz do Brasil um mercado com alto potencial de crescimento para a Visa em pagamentos com cartões de crédito, débito ou pré-pago. Num país onde 60% dos pagamentos ainda são feitos em dinheiro, apenas um terço da população tem cartão de crédito e há mais de 5,5 mil municípios, existem muitas oportunidades para pagamentos digitais, afirma.
O executivo afirma que existe muito espaço para avançar, principalmente em transações entre empresas e programas de transferência de governos para cidadãos. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Qual a estratégia da Visa diante da maior concorrência no mundo de pagamentos?
Alfred F. Kelly: Novas carteiras eletrônicas, fintechs e bancos digitais representam uma oportunidade para permitir que mais pessoas trilhem um caminho digital. Estamos fazendo tudo que podemos para ter certeza de que estaremos no meio de qualquer movimentação de valores no mundo. Não importa se é um montante pequeno de dinheiro ou uma empresa que vai enviar grandes quantias, queremos estar no meio disso, com capacidade para lidar com questões regulatórias e proteção à lavagem de dinheiro. Como exemplo, a compra que fizemos há alguns meses da Earthport [empresa que oferece serviço de pagamentos entre países para bancos] dramaticamente aumenta o nosso alcance e escala com uma rede incrivelmente segura. Gastamos centenas de milhões de dólares em tecnologia e cibersegurança todo ano, o que nos ajuda a ser um player importante do mercado.
“No Brasil, as oportunidades de substituição do dinheiro para um plástico físico ou digital ainda são muito grandes”
Valor: Como a Visa está se relacionando com as novas empresas de pagamentos?
Kelly: Dois anos atrás, percebemos que estávamos lentos e burocráticos em facilitar que novas empresas - fintechs e pequenos bancos - ingressassem em nossa rede. E, ao redor do mundo, criamos uma programa de ‘fast track’, no qual estamos tentando cortar a burocracia e tornar mais fácil para as pequenas empresas entrar na rede da Visa. Estamos falando de dias e semanas versus semanas e meses. Devido ao nosso alcance, escala e marca, essas empresas são atraídas para nós, mas era muito difícil fazer negócios. Agora que resolvemos essa questão, estamos vendo um alto retorno em termos de novos bancos e fintechs fazendo negócios conosco. Aqui no Brasil, a Visa investiu na Conductor.
Valor: Vocês planejam ser investidores de fintechs?
Kelly: Não somos uma empresa de investimentos. Se encontramos uma fintech que pode ser uma parceira interessante, como a Conductor no Brasil e a YellowPepper na América Latina, fechamos um acordo comercial para trabalhar juntos e, se for importante para eles que nos tornemos investidor, então investimos. Mas apenas vamos investir em duas condições: com um acordo comercial e quando é importante para o parceiro. Não estamos tentando descobrir vencedores e perdedores do ponto de vista de investidor. Estamos tentando ver vencedores que vão nos ajudar com o nosso negócio, e estão envolvidos com nossa marca. Se eles forem bem, e fizemos um ótimo investimento, isso é ótimo. Mas é um objetivo secundário.
Valor: O balanço da Visa tem sido impactado pelo aumento da competição no setor?
Kelly: Nos resultados de junho, havia cerca de 5 bilhões a mais de transações realizadas pela Visa nos 91 dias daquele trimestre do que no mesmo trimestre do ano anterior. Isso significa que, na média, havia 54 milhões de transações incrementais em cada dia. As pessoas têm escolhas quando vão pagar e elas estão selecionando Visa e um dos produtos dos nossos bancos parceiros.
Valor: Mas haverá menos transações com cartões no futuro?
Kelly: Não, porque há muitos mercados, como no Brasil, onde as oportunidades de substituição do dinheiro para um plástico físico ou digital é muito grande. O negócio de simplesmente facilitar o pagamento de bens e serviços via cartão de crédito, débito ou pré-pago tem muito potencial de crescimento. E também vejo potencial em novos fluxos de pagamento, como no peer-to-peer (P2P).
“Estamos vendo um alto retorno em termos de novos bancos e fintechs fazendo negócios conosco”
Valor: Em quais mercados há mais oportunidade?
Kelly: O espaço de pagamento B2B [negócio para negócio] também é grande. Nós estimamos que há US$ 120 trilhões de pagamentos nesse espaço que não estão em plásticos ou formas digitais. São feitos ainda em cheque, dinheiro ou transferência bancária. Há ainda os programas de transferências de governos para cidadãos. Os governos ao redor do mundo cada vez mais querem ter certeza que estão tornando a economia digital e, portanto, eles querem mais e mais transações em forma digital. Adicionalmente, isso ajuda muitos países a obter mais transparência e uma economia ‘cinza’ menor. O primeiro ministro [Shinzo] Abe, do Japão, está usando os jogos olímpicos no próximo verão como uma plataforma para tentar aumentar o total de pagamentos digitais no país. O Japão é um mercado como o Brasil, Alemanha, México, com uma economia muito grande, mas ainda usuária intensa de dinheiro.
Valor: De olho nesse potencial, a Visa tem investido mais no Brasil?
Kelly: Quando olhamos para um país como o Brasil, onde particularmente 60% dos pagamentos ainda são feitos em dinheiro, só um terço da população tem cartão de crédito e há mais de 5,5 mil municípios, há ainda uma oportunidade de conectar vendedores e fornecedores para aceitar formas de pagamentos digitais. O Brasil é o quinto maior país do mundo, em termos de população, e tem a chance de ser mais do que a nona maior economia do mundo. O fato de ter milhares de cidades, algumas delas bastante desenvolvidas e outras se desenvolvendo, é quase como se existisse um ‘minimundo’. Identificamos, nas nossas pesquisas, as Cidades do Futuro, e começamos a fazer um piloto há alguns anos com três. Hoje, temos uma lista de mil que decidimos priorizar pelo potencial de crescimento no uso de pagamentos digitais. Temos um time de 170 pessoas no Brasil, divididos entre São Paulo e Brasília. Não temos muitos outros países ao redor do mundo com tantos recursos, e isso é uma combinação do tamanho e importância do Brasil.
Valor: O ambiente econômico e político é preocupação no país?
Kelly: Somos jogadores de longo prazo, não olhamos para um país ou cidade por um ou dois anos, mas sim décadas. Estamos na China por cerca de 40 anos e ainda não temos uma licença doméstica [a empresa está impedida de capturar transações domésticas, apenas internacionais]. Economias vão para cima ou para baixo, o que está provavelmente ocorrendo no Brasil, mas eu acho que a economia brasileira está voltando a crescer, ao contrário do mundo, que deve entrar em recessão. Estamos acostumados a lidar com regulação, oscilações nas economias, e isso só nos pressiona a gerenciar o negócio de maneira mais inteligente. Num período de economia em desaceleração, nós provavelmente investimos um pouco mais devagar, mas nós também podemos investir mais pesadamente se pensarmos que a queda não será tão longa. Tentamos ser muito reflexivos sobre como, onde e no que investimos ano a ano. Mas não estamos aqui no Brasil para um dia, semana, mês ou ano, estamos por décadas.
Valor: Como reguladores estão lidando com as mudanças no setor?
Kelly: Temos um grande respeito pelos reguladores ao redor do mundo. Não significa que sempre vamos concordar, mas eles geralmente têm inclinações positivas. O que eles querem? Competição, porque eles querem inovação. Querem ter certeza que a privacidade está sendo respeitada e que o dado está seguro. A propósito, nós queremos todas essas coisas também. Gastamos muito dinheiro tendo certeza de que o dado está seguro. Guardamos o mínimo de dado pessoal identificável possível. Nós até queremos competição. Mas quero ter certeza que o campo de jogo está igual, que não há uma regulação que dê a um tipo de competidor ou a um competidor específico uma vantagem em detrimento de outro.