18/10/2019 - Facebook subestimou peso da regulação em moeda digital
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Por: Hannah Murphy e Kiran Stacey
Quando o Facebook divulgou, em junho, seus ambiciosos planos de capitanear a criação de uma moeda digital mundial, seu cofundador, David Marcus, prometeu cooperação sem precedentes entre alguns dos maiores nomes em tecnologia e pagamentos. “Todos terão seu papel”, disse o executivo do Facebook sobre os 28 membros fundadores iniciais de seu programa, batizado de libra.
Mas, neste mês, o Facebook foi pego de surpresa quando sete das empresas de alta visibilidade, entre as quais eBay, PayPal, Visa e Mastercard, recuaram do projeto, deixando seu futuro incerto.
Membros da assim chamada Associação Libra começaram a encarar o projeto com reservas após autoridades reguladoras e políticos do mundo inteiro terem advertido que uma moeda digital do mercado de massa poderia representar uma ameaça ao sistema financeiro, além de levar à lavagem de dinheiro e aumentar o financiamento ao terrorismo.
Alguns ex-membros disseram ao “Financial Times” que sentiram que o Facebook subestimou o estreito monitoramento das autoridades reguladoras que o projeto atrairia, e que o Facebook tinha enaltecido, exageradamente, o grau de comprometimento dos membros, que, naquele estágio, consistia em assinar um acordo não vinculante de que contribuiria com ao menos US$ 10 milhões para os seus cofres no futuro.
Vários deles também disseram que, apesar de suas ambições de promover a libra como esforço conjunto, o projeto tinha sido ligado muito fortemente ao Facebook, numa época em que a empresa está às voltas com vários escândalos de violação de privacidade e com uma enxurrada de investigações antitruste nos EUA e na Europa.
“O Facebook tem sido um para-raios”, disse um dos membros, acrescentando haver uma “diferença de percepção” entre o que o Facebook considerava que seria um “lançamento estupendo” e a gravidade das preocupações das parceiras.
A gota d’água, disseram várias pessoas, foi quando Mark Zuckerberg, o executivo-chefe do Facebook, foi chamado para depor perante o Congresso dos EUA e vários senadores do Partido Democrata escreveram para os membros de pagamentos do programa conclamando-os a reavaliar seu envolvimento.
De acordo com uma pessoa a par da situação, houve discussões confidenciais entre os grandes membros de pagamentos regulamentados, que discutiram se sairiam ou não na mesma época, diante do grau de “polarização” alcançado pelo projeto.
Enquanto as empresas que mantêm relacionamentos comerciais com o Facebook consideraram a decisão difícil, outras notaram que as empresas de pagamento em especial também foram provavelmente movidas por seus próprios motivos comerciais.
“Não surpreende que foram principalmente as empresas de pagamentos que saíram [do projeto] - são elas que estão sujeitas a perder mais com o surgimento de um concorrente digital”, disse uma pessoa próxima ao empreendimento. “Se tivessem ficado, teria sido um caso de pôr a raposa para cuidar do galinheiro.”
A participação inicial desses membros revestiu o projeto de credibilidade pública e de viabilidade regulatória. Sem eles, o âmbito das ambições da libra talvez teria de ser corrigido.
Embora nunca tenham delineado precisamente de que maneira a libra participaria de suas empresas, esses membros teriam contribuído para fomentar a adoção de uma moeda por meio de suas extensas redes.
Como gigante do comércio eletrônico, a eBay poderia ter estimulado milhares de clientes a usar a moeda de baixo custo por meio de sua plataforma quando as pessoas adquirissem produtos vendidos em uma outra moeda, por exemplo.
A libra poderia ter recorrido às varejistas que usam os processadores Stripe ou PayPal de pagamentos on-line caso a moeda fosse integrada em seus serviços. O Facebook também deu indícios de que o PayPal teria oferecido serviços de programas de compras on-line com pagamento pela internet para manter a libra, como sua própria subsidiária Calibra pretende fazer.
A Mastercard e a Visa também poderiam ter garantido que a libra fosse amplamente aceita on-line e em lojas. “Perder empresas de pagamentos como a Visa e o Mastercard, e suas onipresentes redes de pagamentos, pode ser um grande revés para o uso da libra nos pagamentos do dia a dia, como a compra de café”, disse Garrick Hileman, pesquisador-associado da London School of Economics e diretor de pesquisa da Blockchain, uma empresa de serviços de programas de compras on-line com pagamento em criptomoeda pela internet.
O apoio dessas empresas também teria ajudado o projeto a superar desafios regulatórios, segundo Preston Byrne, um dos sócios do escritório de advocacia Byrne & Storm. “Se qualquer outra nova empresa, sediada no exterior, tentasse conseguir processamento de pagamento dos EUA para essa oferta sob um acordo normal de varejista com uma processadora de cartão de crédito, essa tentativa, quase certamente, teria seu avanço retardado com base no alto risco do negócio”, disse ele.
“A libra precisaria obter tratamento preferencial das principais provedoras de pagamentos on-line [...] a fim de contornar esse obstáculo”, disse ele, acrescentando que as empresas de pagamentos tendem atualmente “a insistir que a Associação Libra negocie com elas em condições de isenção de interesses”.
Mas Dante Disparte, o vice-presidente da Associação Libra, disse não ter havido “recurso a qualquer empresa de qualquer setor determinado no sentido de contribuir para conduzir o ‘compliance’ da associação”, acrescentando que, “dadas as oportunidades representadas por esse projeto”, esses participantes poderão, ainda assim, apoiar a libra como forma de pagamento no futuro, mesmo que não participem do órgão de gestão inicial.
O futuro do projeto dependerá agora em grande medida da possibilidade de ele obter as necessárias aprovações regulatórias, o que poderá envolver a implementação de mudanças no formato do projeto.
Mas mesmo os membros que permanecem são duvidosos. Alguns deles manifestam reservas e fazem monitoramento em busca de possíveis rupturas futuras. “As peças do dominó estão caindo”, disse um dos atuais membros.
Uma das críticas levantadas por alguns é que a empresa deveria ter atrelado a libra ao dólar dos EUA a fim de criar um sistema de pagamentos mais claro, em vez de uma moeda inteiramente nova. Outros estão conclamando o Facebook a assumir um papel de menor destaque daqui para a frente.
Mesmo assim, os executivos da libra sinalizaram que levarão o empreendimento à frente, apesar de reconhecer que talvez possam perder a meta de lançá-lo até o fim de 2020, e que apenas o lançarão se contarem com a aprovação dos órgãos de vigilância dos EUA e da União Europeia (UE).
Uma das pessoas estreitamente envolvidas com a libra disse acreditar que as conversas iniciais com o Departamento do Tesouro sobre o projeto tinham sido “muito boas” e que alguns bancos de porte considerável estão entre as mais de 1.500 organizações que manifestaram interesse em ser parceiras da libra no futuro. De acordo com a Associação Libra, 180 dessas empresas reúnem os critérios para se tornar membros.
Depois de sua primeira reunião oficial, na segunda, a associação disse ter nomeado um conselho supervisor de cinco membros e ter firmado um estatuto social inicial.
“É loucura, é delírio”, disse a pessoa sobre o destaque de natureza reguladora dado ao projeto. “[Mas a libra] mais do que dobrou a aposta nisso. Elas não vão introduzir Mark Zuckerberg no Capitólio [sede do Congresso dos EUA] se simplesmente abandonarem [o projeto].”