01/02/2017 - Repensando o modelo de cartões
VoltarPor Lauro Gonzalez e Adrian Cernev | Valor Econômico
Na última quinzena de 2016, o governo federal anunciou um pacote de medidas microeconômicas visando dar algum alento à combalida economia brasileira. Algumas medidas estão relacionadas diretamente ao mercado de pagamentos, especificamente os cartões de crédito. De fato, é difícil não reconhecer que a indústria de serviços financeiros como um todo precisa vivenciar um ambiente de maior concorrência e eficiência de mercado. É também consenso que o atual patamar de taxas de transação e juros cobradas pelos cartões de crédito precisa cair.
Os dois anúncios que chamaram maior atenção do público em geral foram a redução do prazo de pagamento para os comerciantes que efetuarem vendas por meio do cartão, de 28 para 2 dias, e a liberação da cobrança de preços diferentes em função do meio de pagamento utilizado, ou seja, dinheiro, cartão, cheque etc. Tanto algumas empresas da indústria de cartões quanto órgãos de proteção e defesa do consumidor manifestaram preocupação e certa contrariedade diante desses anúncios.
Menos polêmica parece ter sido a medida propondo a redução do prazo máximo para utilização do crédito rotativo, cujas taxas médias praticadas pelo mercado beiram 500% ao ano. A proposta menciona um teto de 30 dias. Passado esse prazo, os clientes devem migrar automaticamente para linhas de crédito de menor taxa de juros. Essa medida já vinha sendo praticada pelo mercado, ainda que de maneira não generalizada. Afinal, melhor renegociar a ficar com uma dívida que tem poucas chances de ser paga.
Espera-se que essas mudanças reduzam a necessidade de investimento em capital de giro dos comerciantes e as taxas cobradas em cada meio de pagamento, sendo a diferenciação de preços um fator de pressão de mercado. Por exemplo, parece não existir razão técnica para que as taxas cobradas nos cartões de débito, que têm risco relativamente baixo, sejam tão altas quanto as taxas cobradas nos cartões de crédito.
Além disso, com as altas taxas de juros vigentes, é difícil imaginar que os clientes dos cartões estejam de fato parcelando compras "sem juros". Alguém paga a conta via preços cobrados mais elevados. Provavelmente, a maior parte dessa conta é paga pelos consumidores de maneira geral, inclusive aqueles que preferem não utilizar o cartão e que poderiam ter preços menores nas compras porque são pagas em dinheiro. Trata-se de um subsídio cruzado, ou seja, uma parcela dos consumidores arca com custo que deveria ser atribuído a outros.
Uma estimativa preliminar da ordem de grandeza desses subsídios pode ser obtida a partir de dados coletados recentemente pelo Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão financeira da FGV e pelo Plano CDE. Os dados fizeram parte de estudo objetivando aprofundar o conhecimento dos diferentes perfis comportamentais das classes CDE a fim de subsidiar estratégias de desenvolvimento de produtos, projetos de educação financeira e políticas públicas adequadas às necessidades dessa população.
A análise dos dados revelou que, ao contrário do que se imagina, há uma diversidade relevante no comportamento dos relativamente mais pobres. Pessoas de renda semelhante podem ter atitudes completamente diversas frente aos mesmos serviços financeiros. Daí porque é preciso utilizar um número maior de variáveis para que obtenha uma segmentação adequada desse público.
A pesquisa mostrou que 19% dos 113 milhões de brasileiros pertencentes às classes CDE optam por não utilizar cartões no seu cotidiano. Trata-se de um grupo bastante conservador no tocante ao uso de serviços financeiros em geral e não apenas crédito. Portanto, são cerca de 21 milhões de pessoas, relativamente mais pobres, que devem estar subsidiando aqueles que compram pretensamente sem juros e, consequentemente, turbinando os retornos das empresas de cartão. Não parece transparente e muito menos socialmente justa tal configuração, além de estar em total desalinhamento com os objetivos de aumento da inclusão financeira.
Se as medidas forem efetivamente adotadas, deve haver maior interesse na utilização de meios de pagamento mais baratos, incluindo dinheiro em espécie, pelo menos no curto prazo. O risco de uma migração intensa para os pagamentos em espécie dependerá dos custos associados aos meios de pagamento eletrônicos, em especial as taxas cobradas nas transações por cartões de débito. Se as instituições rapidamente diferenciarem as taxas cobradas, reduzindo significativamente os custos do débito, é possível que os comerciantes não privilegiem os pagamentos em dinheiro vivo, uma vez que há custos e riscos envolvidos, sobretudo ligados à segurança.
Houve movimento similar em outros países há alguns anos. Em vários lugares da Europa, as taxas máximas cobradas nas transações com cartões de crédito e de débito foram reduzidas de forma abrupta para 2% e 0,5% e ainda hoje sofrem pressão para maior redução. Nos Estados Unidos, de 2006 a 2011, cartões de débito cresceram 80% enquanto cartões de crédito cresceram 7%. O fato é que as empresas que operam com pagamentos e crédito terão que se adequar.
Apesar da esperada redução da inadimplência no mercado, é possível que haja impactos negativos para modelos de negócio específicos, entretanto, isso não parece suficiente para descartar a adoção das medidas anunciadas. A maior parte das empresas do setor reconhece a necessidade de encaminhar alguma solução visando aprimorar o funcionamento do mercado.
Setores da economia em transformação trazem riscos e propiciam novas oportunidades. Espera-se que, no caso específicos das Fintechs, haja inovação não somente na forma e nos canais de atendimento a clientes, mas principalmente em novos modelos de negócio que impulsionem o crescimento e a inclusão.
Lauro Gonzalez e Adrian Cernev são professores da FGV e pesquisadores do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV.