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12/12/2023 - O parcelado sem juros vai mudar ou acabar? Entenda o que está em discussão nesta briga

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Por Júlia Lewgoy | Valor Investe

O parcelado sem juros está no centro de uma discussão sobre como diminuir os juros do rotativo do cartão, que alcançam 450% ao ano, em média, quando a pessoa não paga a fatura. De um lado, bancos defendem a limitação dessa modalidade. De outro, comerciantes e empresas de maquininhas lutam pela manutenção. E no meio do debate está o consumidor, que usa o parcelado sem juros para comprar bens, comida e remédio em vez de pegar empréstimo caro.
 
Existe uma briga de anos entre os bancos, comércios e empresas de maquininhas de como diminuir os juros do rotativo do cartão. O capítulo mais recente começou em 3 de outubro, quando a sanção de um projeto de lei deu 90 dias para os bancos apresentarem ao Conselho Monetário Nacional (CMN) uma proposta para limitar os juros do rotativo do cartão. Ou seja, o prazo acaba daqui menos de um mês e se os bancos não cumprirem, os juros do rotativo serão limitados ao dobro do valor do principal da dívida.
 
O Banco Central, bancos, comerciantes e empresas de maquininhas de cartão formaram um grupo de trabalho para conversar e resolver as diferenças. Duas reuniões entre os integrantes do grupo já aconteceram, mas eles ainda não chegaram a uma conclusão.
 
Os bancos aproveitaram esse debate para discutir não a extinção, mas sim mudanças no parcelado sem juros. Eles afirmam há anos – desde 2019 pelo menos, no livro da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) “Como fazer os juros serem baixos no Brasil” – que essa modalidade é responsável pelos altos juros do rotativo do cartão.
 
O parcelado sem juros impulsiona a inadimplência e os juros, conforme as instituições financeiras, porque o prolongamento da dívida aumenta a chance de os consumidores não pagarem a fatura e acabarem no rotativo – e esse risco sobe os juros.
 
Ainda, os bancos dizem que o parcelado sem juros não existe, porque os varejistas antecipam dinheiro com as empresas de maquininhas em troca de uma taxa de desconto, embutindo nos preços o valor do custo dessa antecipação e impulsionando o parcelado.
 
Assim, a alegação das instituições financeiras é que o parcelado sem juros causa distorções no sistema. Elas argumentam que mudanças nessa modalidade ajudariam a equilibrar esse mecanismo. Uma mudança seria a limitação no número de prestações, que supostamente permitiria reduzir o risco de crédito e diminuir os juros.
 
A Febraban afirmou em nota ao Valor Investe que defende uma limitação do parcelado sem juros para ter um “reequilíbrio de médio e longo prazos na arquitetura do produto do cartão”. A entidade disse que tem debatido diferentes propostas com o Banco Central e outras entidades de cartões. “Não há, portanto, uma única proposta sendo analisada”, acrescentou.
 
A briga esquentou nesta semana. A Febraban pediu também ao Banco Central para investigar e punir empresas de maquininhas independentes, por supostamente praticarem operações irregulares e fictícias, por meio das quais essas empresas estariam cobrando juros das pessoas, mas lançando na fatura do cartão como modalidade de parcelado sem juros. A acusação é que elas estariam criando um modelo de "parcelado sem juros pirata".
 
Em resposta, a Associação Brasileira de Internet (Abranet), que representa as maquininhas indendentes, rebateu às acusações. A entidade afirmou que as empresas associadas não foram notificadas pelo Banco Central sobre o pedido e que essa é "mais uma tentativa dos ‘bancões’ de atingir as empresas independentes". Ainda, disse que os grandes bancos não têm avançado na tentativa de restringir o parcelado sem juros.
 
"Nas discussões para proposta de consenso dos setores, com vistas a posterior apresentação ao Conselho Monetário Nacional (CMN), intermediadas pelo Banco Central (conforme previsto na lei aprovada pelo Congresso), a Febraban não conseguiu demonstrar qualquer relação entre o parcelado sem juros e os altos juros cobrados pelos 'bancões'", afirmou.
 
"Nessas discussões, a Febraban é a única entidade a tentar impor a redução drástica do número de parcelas do parcelado sem juros, contra as empresas independentes de maquininhas e o setor varejista, que querem manter essa importante forma de acesso dos brasileiros ao consumo. Há outras propostas para a redução dos juros (como a melhoria dos critérios de emissão de cartões pelos próprios bancos) que poderiam compor o necessário consenso, se a Febraban abandonasse a obsessiva meta de destruir o parcelado sem juros", disse.
 
 
Em defesa de manter o parcelado sem juros
 
Como dá para ver, a posição dos bancos anda causando reações de entidades de defesa do consumidor, comerciantes e empresas de maquininhas. Uma das alegações em defesa da manutenção do parcelado sem juros é que essa modalidade é um direito dos consumidores brasileiros, especialmente os de menor renda, porque é uma das mais importantes ferramentas de concessão de crédito do Brasil.
 
O parcelado sem juros permite comprar bens, comida ou remédios, por exemplo, mesmo sem ter dinheiro para pagar à vista. Sem esse instrumento, os consumidores teriam que pegar um empréstimo no banco, com juros maiores.
 
Um estudo do Datafolha apontou que 75% da população fez uso do crédito parcelado sem juros em 2022. Ainda, um levantamento do Instituto Locomotiva mostrou que quase 115 milhões de brasileiros (78% da população) só conseguiram conquistar seus sonhos até hoje porque puderam comprar nessa modalidade e que 42% dos brasileiros diminuiriam seus gastos pela metade sem o parcelado sem juros.
 
"A tentativa dos grandes bancos em eliminar ou limitar o parcelado sem juros é uma estratégia de compensação pela redução das taxas exorbitantes do crédito rotativo e uma busca desesperada de recuperar vantagens competitivas frente às fintechs. Em vez de disputarem a preferência dos consumidores, desejam apenas manter sua lucratividade", afirma Henrique Lian, diretor de relações institucionais e mídia da Proteste.
 
"Lembro, contudo, que o Congresso e o Conselho Monetário Nacional têm obrigação constitucional de defender os consumidores que são os mais vulneráveis agentes de mercado. E estes, que sempre acabam pagando a conta, nunca são suficientemente ouvidos e considerados", diz.
 
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) tem uma posição parecida. “Existe uma grande queda de braço entre os bancos e os lojistas, mas os consumidores estão no meio como vítimas. As pessoas tinham o hábito de comprar menos e à vista, só que a publicidade e a facilidade estimularam o consumidor a comprar sem juros no parcelado, e se ele quiser pagar à vista não tem desconto. Isso estimula as pessoas a usar cada vez mais cartões” afirma.
 
“O parcelado sem juros não é o ponto que precisa ser discutido, e sim um teto para os juros do crédito rotativo, além de educar as pessoas que elas podem pagar no Pix à vista e com desconto, mas isso é um processo”, diz.
 
Limitar o parcelado usado por 75% das famílias gera um impacto brutal em um país desigual como o Brasil, que deve permitir que as pessoas tenham acesso a bens e serviços, afirmou Felipe de Paula, professor da FGV Direito de São Paulo e sócio de XVV Advogados, no Euroconsumers Fórum 2023, que aconteceu em Brasília recentemente.
 
O problema do juro alto do rotativo está sendo transferido para mulheres da classe C ou D da região Norte ou Nordeste, por exemplo. Enquanto não discutirmos esse problema para valer, transferi-lo para uma parcela da população que não tem nada a ver com isso me parece perverso. Não há problema em fazer o debate, mas precisamos entender sobre quem recairá os efeitos disso”, disse.
 
 
Limitar o parcelado diminui os juros mesmo?
 
Um segundo argumento em defesa dessa modalidade é que não existem estudos que comprovem que a limitação do parcelado sem juros diminuiria os juros do cartão de crédito rotativo. Associações de empresas de maquininhas apresentaram estudos mostrando, inclusive, que existe uma correlação negativa entre o parcelado sem juros e a inadimplência. Ou seja, esse não seria um motivo para os juros altos.
 
“Estudos têm sugerido o contrário, que aqueles consumidores que parcelam mais têm menos chance de não pagar a fatura e acabar no crédito rotativo”, afirmou Vinicius Carrasco, economista-chefe e sócio da Stone Cartões e professor da PUC-Rio, no evento em Brasília.
 
O parcelado sem juros ganhou uma discussão desproporcional, afirmou Raul Moreira, conselheiro do Banco Original e do PicPay e membro das diretorias da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs) e da Associação Brasileira de Bancos (ABBC).
 
“O ideal seria as instituições financeiras reconhecerem que mudanças estruturais causaram um impacto relevante na concorrência e que elas estão sendo prejudicadas e não têm mais o mesmo nível de rentabilidade que poderiam ter”, disse. “Chegamos onde desejávamos há dez anos e não me parece lógico existir uma regulação que imponha restrições ao parcelado sem juros. Cada um deve operar com o nível de risco que está disposto a correr, faz parte da dinâmica do mercado”, acrescentou.
 
Uma terceira justificativa para a manutenção dessa modalidade é que o parcelado sem juros é bom para comerciantes e prestadores de serviços também. Boa parte dos empreendedores usa essa modalidade para ganhar fôlego no capital de giro e limitações nesse instrumento diminuiriam as vendas. Uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) revelou que nove em cada dez varejistas no Brasil adotam o parcelado sem juros no cartão para efetivar ao menos parte de suas vendas.
 
Esses argumentos pela manutenção do parcelado sem juros são defendidos em uma campanha batizada de "Parcelo, sim!", apoiada por 20 entidades em defesa de consumidores, comerciantes e bares e restaurantes. A ideia é engajar em um abaixo-assinado, já assinado por 120 mil pessoas no site parcelo.sim.com.br, para sensibilizar o Legislativo e o Executivo.
 
Entre os organizadores do movimento, estão a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
 
 
E o Banco Central nesse debate?
 
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou nesta semana que a autoridade monetária não vai "fazer nenhum tipo de mudança que influencie as pessoas na capacidade de comprar", mas enfatizou que é "preciso olhar o longo prazo".
 
"O fato é que o parcelado sem juros cresceu muito e é quase 15% do crédito. O CDC [crédito direto ao consumidor] cresceu muito menos. Quando o consumo sobe, o que acompanha é o parcelado sem juros e não o CDC", disse. "A inadimplência de cartões ficou alta. Acabamos tendo juros muito altos no rotativo. Tem uma indústria de desconto de fluxo de caixa", acrescentou.
 
De acordo com ele, existem "distorções" no sistema que precisam ser resolvidas.
 
No mês passado, o presidente do Banco Central chegou a dizer que o juro do rotativo do cartão talvez seja o problema mais complexo que já enfrentou. E enquanto atores diferentes discutem qual é a solução para os juros altos, o consumidor continua pagando taxas médias de 450% ao ano no crédito rotativo.
 

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